15.4.05

Sobre Objectividade e Consciência

Às vezes meto-me em alhadas. Como esta, de começar a pensar na tese de mestrado. O ano passado li um conto do Italo Calvino que me despertou a curiosidade sobre dois conceitos raramente abordados e debatidos em arquitectura. Para isso, socorri-me da ajuda de outro poeta das imagens, Hiroshi Sugimoto, e de mais alguns rapazes da filosofia, para tentar fazer a ligação entre as sinapses deste meu cérebro muito pouco metódico.


Hall of Thirty-three Bays, Hiroshi Sugimoto, 1995

Nos finais dos anos 80, Hiroshi Sugimoto fotografou as 1.000 estátuas do Bodhisattva Kannon no interior do famoso templo budista de Kyoto, Sanjusangendo (Salão dos Trinta-e-três Saguões), datado do século XIII.

Em 1995, após sete anos de lobbying, foi-lhe concedida autorização. Trabalhando durante a aurora, numa altura tradicional para a meditação, capturou a luz da alvorada a reflectir sobre as figuras. As fotografias resultantes - imagens belas, ricas e detalhadas a preto-e-branco - emolduram fileira após fileira de rostos ligeiramente variados do Kannon. Esta série de imagens meditativas imerge o espectador no que o artista denominou “um Mar de Buddha."

“The figures are all slightly different, so I want people's eyes to focus on those differences. The thousand almost-identical Buddhas which I photographed were made in the 13th Century, so this is the conceptual aspect of Japanese art, which was what motivated me to work on it. “– diz Sugimoto

Este mesmo conceito de comparação e semelhança foi adoptado na sua série de paisagens marítimas iniciadas em 1980. Variações sobre o mesmo tema. Um processo de investigação que utiliza sempre os mesmos materiais, água e ar. Estas paisagens ultrapassam a mera representação do mar. As ondas são o efémero; em oposição ao mar (indiferentemente da sua geografia), que é perene. O todo é mais que a soma de todas as partes.

“I just amaze myself at how I see things differently and new. So I have to keep investigating. Every day is different, every minute. But it's like, if I were a scientist and I was given one of the first telescopes, then later on I was given one 10 times more powerful, I get to see more. My eye has become so well trained that I can see the same things in different ways, more detailed ways. You are powering up the ability of your eyes and it is simply an endless process. In the early 90’s I started making night-time seascapes. It was not a specific decision - I was working on the seascapes and it would be getting late and dark, and I was getting darker and darker images [laughs]. It used to be an eight-hour operation, now it's turning into a 24-hour one. Early morning is beautiful, late night under the moonlight is very romantic and beautiful. So I'm becoming a sleepless photographer.”

Sugimoto, intitulou o primeiro portfolio que publicou sobre paisagens marítimas 'Time Exposed', porque, segundo segundo ele, “(...) time is revealed in the sea. (...) I was thinking, what would be the most unchanged scene on the surface of the earth? (...) The seascapes, I thought, must be the least changed scene, the oldest vision that we can share with ancient peoples. So that's a very heavy time concept. (...) I wanted to stop the motion of the waves, which are constantly moving.”



Existe um paralelismo entre a novela “Palomar” (1983), de Italo Calvino, principalmente o texto “Leitura de Uma Onda”, e as fotografias de Sujimoto que vai muito para além do conceito de comparação e semelhança. Não são as características do objecto mas a manifestação do objecto que são importantes. Não é a objectividade científica e analítica mas os mecanismos ratio-emotivos que devem ser valorisados.

"That started in 1997. It was commissioned by MOCA Los Angeles, without a fee, for a survey of modernist architecture, and it seemed like an interesting idea to photograph 20th Century architecture out of focus. The concept of time applies - I'm trying to recreate the imaginative visions of the architecture before the architect built the building, so I can trace back the original vision from the finished product. All the details and all the mistakes disappear; there are a lot of shadows, melting. If the building is successfully done, then it will remain strong even out of focus. Again, it's a minimalist approach, taking away all the details but being left with a very strong vision."

Hiroshi Sugimoto, “The Sleepless Photographer”.

A objectividade é "de algum modo o denominador comum das filosofias da ciência do nosso tempo". 1

Objectivo: Enquanto substantivo, designa um fim que se propõe atingir. Interessa-nos aqui o significado do adjectivo, formado a partir da palavra objecto.
1. Sentido comum: descrição/discurso imparcial ou pessoa capaz de abstrair do seu ponto de vista particular.
2. Entre os escolásticos, como em Descartes: a realidade objectiva de uma ideia é o seu modo de existência puramente espiritual -- uma representação é objectiva na medida em que é um objecto do pensamento (por ex., o sol tal como existe no entendimento), mesmo que nenhum objecto real lhe corresponda na realidade.
3. Segundo Kant: em oposição ao que é subjectivo, é objectivo o que está em conformidade com a realidade, o que é tido como verdade e pode, por isso mesmo, ser admitido por todos os homens.

Características do Conhecimento Científico caracteriza a ciência como um conhecimento objectivo -- ou seja, um conhecimento que "intenta afastar do seu domínio todo o elemento afectivo e subjectivo, deseja ser plenamente independente dos gostos e das tendências pessoais do sujeito que a elabora".

Heidegger, o fundador do paradígma da hermeneutica, rejeita a noção tradicional de actividade cultural como uma procura de fundações universalmente válidas para a acção humana e o conhecimento. O seu tratado principal, Zeit und Sein (1927), desenvolve uma epistemologia da holistica de acordo em que todo significado é contexto-dependente e permanentemente antecipado de um horizonte particular, perspectiva ou experiência de inteligibilidade. O resultado é uma crítica poderosa dirigida contra o ideal de objectividade.

Hans-Georg Gadamer compartilha com Heidegger as reflexões da hermeneutica e a crítica da objectividade desenvolvidas em Zeit und Sein, descrevendo a atividade cultural como um processo interminável de "fusões de horizontes." Em primeira mão, isto é um eco do holismo Heideggeriano, a saber, a tese que todo significado depende de um contexto particular de interpretação. Por outro lado, no entanto, este conceito é uma tentativa de enfrentar com relatividade a existência humana e evitar os perigos de um relativismo radical. Aliás, por um processo interminável, liberta o imprevisível de fusões de horizontes, o nosso horizonte pessoal é gradualmente expandido e privado do seu “eu”, deturpando preconceitos, de tal forma que o processo educativo (Bildung) consiste nesta multiplicação de experiências de hermeneutica. Gadamer prospera, portanto, em apresentar uma teoria non-foundationlist e não-teleologica de cultura.

Calvino insistiu que a literatura devia tentar reafirmar esta distinção, mas não ao ponto de se afundar num labirinto de pessimismo. Para explorar as possíveis fugas desta teia escreveu "Palomar".

"Palomar" surge de várias ideias literárias delineadas em três ensaios escritos na década de 1950. Estes ensaios chocaram com a tendência dos seus contemporâneos de dar demasiado enfâse à objectividade em detrimento da consciência.

Um protótipo do Pós-modernismo, o "Sr. Palomar" procurou combater o demónio da objectividade. Baseando-se na filosofia de Heidegger, Calvino enfatizou o papel do narrador como espectador para dar maior relevo ao fosso entre o observador e o mundo. O Sr. Palomar deslisa pela novela observando, tentando resolver a sua "crise da razão."

Contrariando o processo cognitivo do Sr. Palomar, com método e preserverança, se nos abstrairmos da observação e dissecação dos pormenores, que podem ser subdivididos infinitamente, até talvez consigamos tomar consciência da complexidade do universo reduzindo-o aos seus mecanismos mais simples.

Então porque razão a Consciência não é importante para Heidegger e Merleau-Ponty? Entenda-se consciência, em arquitectura, como pensar, projectar e exercer uma acção num determinado território de tal forma que a Consciência se torna, por um lado, o reconhecimento da mente do “eu'', dos seus actos e influências, e a auto-afirmação de que existem modificações que reconheço e que essas modificações foram operadas por mim.

Fenomenologistas tal como Husserl, e filósofos contemporâneos tal como John Searle, focam a intencionalidade da Consciência como o meio pelo qual sujeitos como nós se relacionam com os objectos, os materiais, com o espaço, as estruturas urbanas, os lugres e os outros sujeitos. Tanto Martin Heidegger como Maurice Merleau-Ponty, no entanto, rejeitam a tentativa Cartesiana de entender os seres humanos como sujeitos fundamentalmente conscientes. Eles raramente mencionam consciência, e quando o fazem, tratam-na como derivativa e sem importância no entendimento da relação humana com o mundo. Heidegger interessa-se principalmente pelo que denomina da “abertura” providênciada pela nossa familiaridade quotidiana com o mundo que nos capacita, quando necessário, estar conscientes de coisas específicas, e Merleau-Ponty concentra-se no que ele denomina como motor ou intencionalidade do corpo, que funciona no seu melhor estilo quando nós não estamos conscientes do que fazemos, como demonstrado pela ausência de consciência em atletas em fluência, e todos nós, no nosso ir-e-vir quotidiano, deparando-nos irreflectidamente com coisas e pessoas.

“A natureza existencial do homem é a razão pela qual o homem pode representar os seres como tal, e pela qual ele pode estar ciente deles. Toda consciência pressupõe existência como a “essentia” de ser humano. A consciência não faz criar a franqueza de ser, nem é a consciência que torna possível ao homem ficar aberto ao “ser”.

Não será a essência do homem [estar-no-mundo], em primeiro lugar, a intencionalidade da consciência de mover o destino e portanto liberta-lo esta dimensão?” 2

É neste ponto que Heidegger nos introduz ao termo Dasein. Este não é apenas um sinónimo de “consciência”, ele reitera, mas indica o facto vital de que os seres humanos, e apenas nós, verdadeiramente existimos, no sentido pleno da palavra, quando estamos-lá por nós-mesmos. Dito de outra forma, auto-consciência conduz à autenticidade de uma vida criada apartir do nada, na face do temor, apenas com a referência dos nossos propósitos deliberados.

Para este processo de auto-criação, Tempo é crucial. O que somos no presente importa menos do que nos estamos a tornar, através do processo dinâmico temporal que constitui as nossas histórias pessoais. Não existe uma essência abstrata da natureza humana; existem apenas seres humanos desdobrando-se históricamente.

No fim, esta é a resposta para a pergunta, “porque é que existe qualquer coisa em vez de nada?” É apenas porque decidimos estar .
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1. Fernando Gil, “A Ciência Tal Qual se Faz”

2. Interpretação do texto de Martin Heidegger, "The Way Back into the Ground of Metaphysics," in Existentialism: from Dostoevsky to Sartre, Ed., Walter Kaufmann (New York: Meridan Books, 1957), p214-215. “Whither and whence and in what free dimension could the intentionality of consciousness move if [being-in-the-world] were not the essence of man in the first place?”